sábado, 30 de maio de 2009

Houve cenas de amor





HOUVE CENAS DE AMOR

Na noite em que esta história teve espaço, pedaços de papel picado cobriam o gramado no jardim. Mas não se apresse em culpar o jardineiro rotulando-o de relapso. Ele era zeloso embora nem sempre estivesse atento ao dia-a-dia dos habitantes do jardim. Cuidava de seus deveres. Vinha, aparava e rastelava, retirava os restos, as folhas secas, colhia as flores. Arrumava aqui e ali um pedaço de cerca onde o arame enferrujado se partira. Pintava de novo uma ou outra ripa onde a pintura estivesse desmaiada. É sempre isso e apenas isso o que se espera de um homem solar, dirigido pela razão. Mesmo sendo um jardineiro ele não se emociona com as cores, com a saudável aparência das rosas de porte avantajado para a espécie, e ignora por completo aquelas que florescem diminutas.

Naquele dia pela manhã esteve no jardim e ao fechar o portão, virando as costas, deixou tudo limpo e arejado, em ordem e em paz.

Portanto, se for seu interesse identificar o causador de tudo aquilo, de tantos pedacinhos de papel cobrindo a grama, direi que foi o vento.

Começou a ventar pouco depois das dez horas da noite. Vento fraco e persistente cuja velocidade foi aumentando aos poucos. É difícil acontecer esse fenômeno neste cantinho do planeta onde em geral tudo é tão calmo e previsível.

Balançando seus raminhos ao vento leve do início daquelas emoções, uma das roseiras mais jovens quis brincar de jogar beijos perfumados. Não demorou e foi seguida em sua traquinagem. Em pouco tempo, ao papel picado juntaram-se pétalas de rosas, milhares delas, constituindo um tapete colorido que cobriu todo o quintal. E o cenário, que com o papel picado dava a impressão de desleixo, quando as pétalas o forraram se transformou completamente. Ficou parecendo que o chalé estava ou entraria em festa.

O que não faz um vento!

Mesmo depois que o vento cessou, a folha espessa da janela permaneceu fechada. E os seres habitantes do jardim, muito intrigados, se perguntavam sobre o que estaria acontecendo.

-- Bem que notei. – murmurou o botãozinho de rosas a uma pequena orquídea.

-- Me conta!

-- Ah! Não sei! Ele não estava escrevendo. Acho que vai sair. Eu queria tanto me pendurar na lapela.

-- Será que vai a uma festa?

-- Não sei. Ultimamente está... Acho que é namoro. Eu queria tanto estar na lapela.
-- Não é namoro nada.

-- Mas ele está diferente. – insistiu o botãozinho de rosas – É namoro e eu queria estar na lapela, para sentir o coração dele.

-- Sentir o coração dele! – murmurou o cravo com vontade de dar um chute no bico de um bule velho, esmaltado, onde o jardineiro pensava plantar mudas de trevos.

O girasol, alto como só ele por ali, tentava ler os ponteiros do relógio na torre da igreja, majestosa do outro lado do bosque. Esperava ansioso pelos badaladas da meia-noite, hora em que muitos mistérios se revelam. O anãozinho de jardim subiu sobre uma pedra tentando um pouco mais de altura para o caso de surgir alguma novidade na moldura da janela. O cravo, como sempre contrariado, mantinha um olho atento aos movimentos do botão de rosas. Sempre gostou dela, que ultimamente estava se esbaldando demais, em sua opinião.

O botãozinho de rosas e o pezinho de orquídea se calaram e houve silêncio no pedaço.

Não se ouvia mais nem um pio no jardim. Para não dizer que o silêncio era absoluto, direi que de vez em quando era possível perceber abafados suspiros de amor emitidos por uma das roseiras, sem que fosse possível identificá-la entre tantas ali existentes. E, claro, podia se ouvir as graminhas crescendo sob pedacinhos de papel e pétalas de rosas.

Com seus olhos grandes o sapo de louça treinava suas habilidades lançando a língua na direção de uma inexistente mosca imaginada sob um caco de telha enegrecida.

Deu meia-noite.
O coração do girasol bateu apressado e a cada som produzido pelo badalo de ferro fundido contra a saia de bronze do sino, na torre da igreja, a cada badalada, batia mais forte seu o coração.

No céu uma densa nuvem negra navegou engolindo quase todos os raios de luz da Lua. Para poder espiar um pouquinho, ela precisou assumir a forma de arco. A bruxa, mais que depressa foi com sua vassoura de cerdas de plástico sentar-se em um dos cantos do arco lunar.

Sobre o jardim pesou uma escuridão inusitada que num primeiro instante trouxe medo a todos os seres ali presentes. Por medo, e não por outro motivo, o pirilampo teve um acesso de liga-desliga e seu rabinho ficou num frenético pisca-pisca.

-- Que ninguém saia correndo – Disse alto o anãozinho de jardim – Permaneçam em seus lugares para que ninguém seja pisoteado.

-- Uock! Uock! Fez o sapo de olhos grandes que recolheu a língua e se aproximou da tartaruga. Ela nem viu. Havia guardado a cabeça em seu chapéu de soldado de infantaria.

Aquele breu absoluto durou, entretanto, apenas alguns segundos.

Milhões de pontinhos de luz desceram do céu caindo sobre o chalé e sobre o jardim, como uma maravilhosa chuva de prata.

E a fada, vestindo aquelas suas roupas lindas, transparentes, pousou serena bem próxima à pedra onde se encontrava o anãozinho de jardim.

Esplendorosa, linda, maravilhosa, a fada mostrou a ele uma menina a sorrir.

-- É o meu pinguinho de luz! – disse emocionada a roseira que durante todo o tempo estivera suspirando.

E assim que a nuvem negra foi varrida do céu, a luz amarelada da Lua voltou prateando o rosto moreno claro da fada. Os olhos negros dela estavam ternos, sonhadores, lindos.

E a janela finalmente se abriu. Ouviu-se um som de chaves abrindo portas e a fada caminhou descalça por sobre aquele tapete de pedacinhos de papel picado e de pétalas de rosas, desaparecendo por trás de um caramanchão.


Tudo isso aconteceu, mas muitas pessoas não acreditam e mesmo entre os seres do jardim há quem diga de tudo não passou de um sonho. Às vezes todos eles concordam em que estiveram sob a ação de encantamento e viram coisas.

Todos, não.

A roseira ainda suspira e diz emocionada:

-- Era o meu pinguinho de luz! Eu o recebi vindo da estrela. Com uma de minhas flores enfeitei e perfumei os seios dela naquela noite de amor. E eu ouvi, vindo pela janela, chorinhos de neném.

O botãozinho de rosa ainda reclama.

-- Era namoro! Era namoro, sim. E eu, que tanto queria estar na lapela... Agora nem sei se ele a beijou.

Só o girasol não fala nada.

Alto como ele só, esteve espiando pela janela.

É a única testemunha ocular, mas é de hábitos saudáveis. Discreto apesar de seu aspecto espalhafatoso.

Ele viu, sim.

Houve cenas de amor!

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