quinta-feira, 15 de julho de 2010

AZIZA

Ela era ainda uma menina nos seus dez anos de idade.

Todos os dias a mãe a levava ao mercado, na cidade de Cabul.

Deixava-a circulando pelos corredores, maravilhando-se com as quinquilharias postas a venda nos diversos Box. Tinha recomendações expressas para que não aceitasse convites e nunca se afastasse dali, sozinha ou acompanhada. A mãe passava o dia exercendo a profissão que abraçara depois da morte do marido.

Aziza não podia compreender as regras daquela sociedade onde a mãe, em determinados ambientes, podia rir e festejar com pessoas que, em público, passavam por ela virando o rosto. Em publico, nem mesmo um olhar de asco semelhante ao que sempre é lançado ao lixo que se acumula nas calçadas.

Em público não era nem mesmo uma desconhecida; era inexistente!

O pai lhe dissera da existência de fadas. Contara sobre certas condições nas quais uma criança pode merecer a atenção de um duende. Num futuro, que não estaria muito distante, um ente encantado a levaria ao estrangeiro oferecendo os meios para instruir-se e vir-a-ser uma pessoa de influências em algum Órgão Internacional, como a ONU. Quando se mostrava ansiosa pela vinda do ente benfeitor, o pai a acariciava com ternura, procurando distraí-la.

-- Menina querida, tudo tem seu tempo!

Vieram mesmo muitos tempos, um dos quais lhe levou o pai para sempre.

Ela e a mãe foram ver o corpo, que entre outros corpos, foi retirado da carroçaria do carro de guerra, entre os muros, no cemitério. A cabeça estava toda coberta por panos manchados de sangue e o pai estava descalço como sempre andara antes da guerra. A roupa que usava era de soldado. Melhor do que as de seu dia-a-dia antes da guerra. Lá no céu o Sol reinava absoluto emitindo sua luz tão branca e tão capaz de transformar as areias em um manto de brasa.

Entre as poucas pessoas que se reuniram no cemitério na ocasião havia um dos lideres religiosos a proclamar a bonde de Ala. Uma bondade terrível! Em conseqüência daquela bondade, o pai era agora apenas uma saudade doída em seu coração infantil.

Alguns meses depois a mãe arrumou aquele seu trabalho. Elas duas passaram a percorrer juntas as ruas pela manhã, em direção ao mercado. E ela passou a percorrer algumas vezes sozinha as mesmas ruas de volta para casa ao cair da noite.

Vinha tiritando de medo, atravessando as vielas onde apenas escombros contavam de habitações bombardeadas. Aziza tinha medo do resto de gente que se deixava ficar entre os entulhos na calçada, recolhendo esmolas. Era o que restava de um homem que lutara na frente de batalha ao lado do pai. A ele faltavam as duas pernas e um dos braços. Era um toco apenas.

Enquanto pela bondade de Alá o pai era uma saudade em seu coração, aquele resto de ser humano era um peso para seus familiares. E assim, Aziza, que jamais teve um livro em suas mãos, aprendeu a desistir de seus sonhos para glorificar a bondade infinita que existe nas sábias lições da vida objetiva.

E Aziza passou a desejar ardentemente que existissem as fadas com seus poderes para driblar os caprichos da vida.

A desejar que uma delas se encarregasse de vir numa noite de lua, ou numa linda manhã de sol. Um ente de amor que viesse, não para levá-la aos estudos e aos primeiros degraus de uma brilhante carreira diplomática, mas, sim, que viesse trazer conforto ao pobre mutilado.

O CARROSSEL

O CARROSSEL



A porta de entrada, ainda que jamais escancarada, ela a encontrou sempre aberta necessitando apenas de um leve toque para afastar a folha e entrar. Em poucos dias familiarizou-se com o ambiente e com o inquilino a quem se habituou a vir quase todos os dias. Parecia-lhe ser um homem mais feliz do que infeliz. Passava muito tempo escrevendo. Quando não o via diante do monitor do micro era porque acarinhava as flores nos fundos do chalé. Se não o via em parte alguma nos arredores, o coração se inquietava, ela se consumia em mau humor que precisava ocultar. A ele dizia chorosa que o coração se enchia de preocupações, mas o que realmente lhe devorava a alma eram os ciúmes.

Via a alegria nos olhos dele em muitos momentos e com freqüência tinha absoluta certeza de que em parte a alegria lhe vinha em razão de sua presença. Ocasionalmente ele a levantava abraçando, rodava com ela negando-lhe por brincadeira os lábios para o beijo eufórico. Ela então vibrava intensamente e rodando suspensa nos braços dele fechava os olhos para sonhar girando num imaginário carrossel do amor.

Certas coisas que ele falava ela não compreendia, mas gostava de ouvir. Uma vez lhe falou sobre a mulher que passou com uma carroça muito carregada, carregada a tal ponto que em determinados trechos da trilha precisava ajudar puxando a carga pela corrente ao lado dos burros. Ela nunca soube se ele havia visto tal mulher com a carroça, e, se a vira, se a estava elogiando ou lastimando-lhe as escolhas. Era algumas vezes brincalhão como quando contou sobre a mulher que abraçou uma foca ao desejar sair para a areia, na praia.

Tinha uma coisa de bom. Sempre a fazia sentir-se pertencente e jamais se escondia das pessoas quando em passeios com ela. Nisso diferenciava-se da maioria dos homens com os quais já havia se relacionado e que não eram poucos apesar de sua pouca idade. Nos primeiros dias mentira para ele dizendo-lhe que dissera aos pais que passaria a noite na casa do namorado. De outro modo ele a teria levado para casa a despeito da noite escura e muito fria. Desmentiu alguns dias depois, sem ser pressionada a fazê-lo, pois ele nunca mais demonstrou preocupação pelo giro dos ponteiros arrastando as horas para dentro da noite. Mas a surpreendeu presenteando-a com uma flauta doce. Disse-lhe que não era difícil aprender. Soprando uma flauta, dissera-lhe ele, você será aos meus olhos um símbolo dos novos tempos. Ela pediu explicações. Estavam em um parque, sobre o gramado de um verde muito escuro aparado, próximos ao lago. Ele a levantou nos braços e girou com ela num ritmo quase alucinante, de sorte que ao deixá-la sobre o chão firme, precisou ampará-la para não cair como acometida por uma vertigem. Então a fez deitar-se e beijando-lhe os olhos disse:

-- Ao longo de milhares de anos, religiões e filosofias tornaram inevitáveis os movimentos feministas. Você pertence a uma nova humanidade que está surgindo, e, ainda que não saiba disso, anuncia a nova era ao seu modo.

-- Mas eu não sou feminista.

-- Não!Claro que não. Você é feminina.

-- Gosta assim?

-- Claro!

-- Então gosta de mim?

-- Por que não?

Ela sentia que sim. Fosse de outro modo não seria tão bom rolar com ele sobre o tapete da sala, nas noites mais quentes, arrepiando-se com os toques dos lábios e dos dentes dele mordiscando-lhe o lóbulo, a cavidade e a área posterior da orelha. Não! Não era como eram os outros quando lhe beijava a nuca e descia a mão acariciando-lhe as costas. Não era igual a ninguém quando lhe punha louca ao lhe beijar as partes internas das coxas, excitado e excitando-a sobre o carpete da sala.

O que ela não sabia é que ele se deixava vencer pelas premências da carne e por isso a tomava daquela forma. Não desejava vê-la um dia com as cargas físicas e emocionais da mulher da carroça, esquecida de amar em razão dos encargos atraídos sobre seus ombros pelos resultados dos movimentos feministas que alardeiam a libertação feminina. Ele a via menina com tanta estrada a avançar em sua caminhada e temia pelo que pudessem lhe fazer as pressões sociais, humilhando-a e levando-a a desistir de sua marcha, voltando como a foca que nunca se decidiu por ser um animal da terra ou do mar.

Tomando-a nos braços, sentia-se ele próprio como se posto por uma força estranha sobre os cavalos de um carrossel, completamente incapaz de impedir o movimento de sobe e desce no giro do tempo.

ASSIM MORREU ZENEIDE

A noite chegou preguiçosa, atrasada, depois de um dia que não queria passar.

As estrelas não apareceram logo. As nuvens espessas de pó e de fuligens desejaram poupá-las das imagens grotescas e dos guinchados do padre, exigindo dos guardas a retirada do corpo das escadarias. Eles dois, cada um segurando em um dos pés, arrastaram o defunto até um canto retirado do gramado. Cobriram com uma lona escura. Acreditavam que naquele caso a polícia técnica não se importaria com a remoção. Algumas pessoas aguardaram por mais de uma hora na esperança de que os pivetes fossem trazidos ao local pelas orelhas. Mas os próprios guardas lhes disseram que de nada adiantaria prendê-los e aos poucos os curiosos se dispersaram.

Zeneide morreu quando saia da igreja, nem soube que o Senhor a veio aliviar por intermédio dos pivetes. Nem eles desejavam atirar nela. Aconteceu. E foi somente isso, quer dizer, foi uma obra do destino, de cujos caprichosos desenhos ninguém está livre.

Foi menina danada, a Zeneide.

Arredia, calada, impossível de amestrar. Cresceu no barraco, nas imediações. Com dose anos de idade ela era dada a seguir as irmãs de caridade que por lá faziam suas rondas distribuindo alimentos, remédios, conselhos e santinhos. Ansiava então pela vinda do pai, ao cair da tarde, sentando-se no chão para acariciar as canelas dele. Parecia enamorada. O pai fazia questão de retribuir a atenção. Punha-a para dormir e não saia do quarto enquanto ela não estivesse dormindo a sono solto. Com o tempo ele começou a se esquecer daquele apego da menina. Então, um dia, ela criou coragem e pediu a uma das freiras para ver como era a embalagem dos preservativos. A freira desconfiou, mas considerou melhor estimular a prevenção. Alguns dias depois o homem que vendia revistas lhe disse em segredo que aquilo não era nem bom nem necessário. E que podia revender dando-lhe alguns trocados. Mas para isso ela precisava aprender a tirar das freiras uma ou duas fieiras completas.

Não era de juntar-se às pessoas, não era de brincar com os meninos que corriam pelas ruas enlameadas. Eles corriam girando aqueles arcos de barris, tocando-os com uma lasca de madeira escura. Não era de brincar com as meninas que batizavam bonecas, ou se expunham ao final da tarde, sentadas sobre a guarda da ponte e pondo a língua para os homens que passavam cansados, elogiando-as, formulando convites para carinhos na cama.

Não! Ela não se juntava a ninguém, preferindo olhar, distraída, para os cães que talvez superassem em número aos humanos que por ali consciente ou inconscientemente cumpriam os dias que a generosa vida lhes riscara nas estrelas. Tardes de sol se pondo avermelhado, avermelhando os telhados de zinco, os terreiros e as ruas de terra nua cortadas por esgoto a céu aberto. Era o pó que avermelhava o sol, ou era o sol vermelho que coloria a poluição, pondo franjas escarlates na fumaça negra das chaminés fabris?

O pai já havia desaparecido quando Zeneide começou a inchar. O homem da banca passara a ser defunto por obra de uma bala perdida. Os meninos riam dela e abaixavam as calças para ela, insultando-a em público. Entre as meninas havia sussurros e as mais ousadas apontavam-na com o dedo em riste, chamando-a de santinha de bordel.

Quando a criança nasceu, veio ao mundo deficiente. Os pezinhos tortos, as perninhas frágeis, sendo uma visivelmente menor que a outra.

Zeneide chorou durante quase todo o primeiro ano. Com a criança no colo, ou acavalada em seu quadril, iniciou as novenas implorando a todos os santos pela cura milagrosa. A criança não andou antes do segundo ano. Nunca andaria como as outras crianças. Praticamente arrastava-se.

No início da noite, enquanto a menina dormia, Zeneide ia à igreja, implorar aos santos uma intervenção junto ao destino. Queria que a filha pudesse pelo menos andar, mesmo que continuassem tortos os pezinhos. Bastava corrigir a atrofia dos músculos.

Ia à igreja no início da noite a conselho do padre. Ele queria poupá-la dos falatórios das carolas na hora da reza do terço. Eram pias demais as carolas. Elas acreditavam que a presença de Zeneide na igreja, na hora da reza, era um insulto ao Santíssimo, a fonte do amor e da misericórdia. E não era conveniente que ela continuasse a vir à sacristia. O padre era o pastor de todas as almas e não podia se dedicar a uma só ovelha. Tanto mais uma ovelhinha que vivia perdendo coisas por ali.

Por ser cabeça dura Zeneide nunca entendeu o que o padre quis dizer com aquele ‘perdendo coisas por ali’. Mas o padre era inteligente e sabia o quanto fora exposto ao constrangimento perante a freira. Sentira-se instado a explicar o aparecimento da embalagem contendo uma camisinha entre seus pertences. Tinha a marca de distribuição feita pelas freiras. Zeneide a deixara cair na nave do templo!

Assim morreu Zeneide. Alguém há de contar como sobreviveu a filha, que ficou sozinha aos dois anos de idade em nosso mundo tão pleno de amor.

A noite chegou preguiçosa, atrasada, depois de um dia que não queria passar.

As estrelas não apareceram logo. As nuvens espessas de pó e de fuligens desejaram poupá-las das imagens grotescas e dos guinchados do padre, exigindo dos guardas a retirada do corpo das escadarias. Eles dois, cada um segurando em um dos pés, arrastaram o defunto até um canto retirado do gramado. Cobriram com uma lona escura. Acreditavam que naquele caso a polícia técnica não se importaria com a remoção. Algumas pessoas aguardaram por mais de uma hora na esperança de que os pivetes fossem trazidos ao local pelas orelhas. Mas os próprios guardas lhes disseram que de nada adiantaria prendê-los e aos poucos os curiosos se dispersaram.

Zeneide morreu quando saia da igreja, nem soube que o Senhor a veio aliviar por intermédio dos pivetes. Nem eles desejavam atirar nela. Aconteceu. E foi somente isso, quer dizer, foi uma obra do destino, de cujos caprichosos desenhos ninguém está livre.

Foi menina danada, a Zeneide.

Arredia, calada, impossível de amestrar. Cresceu no barraco, nas imediações. Com dose anos de idade ela era dada a seguir as irmãs de caridade que por lá faziam suas rondas distribuindo alimentos, remédios, conselhos e santinhos. Ansiava então pela vinda do pai, ao cair da tarde, sentando-se no chão para acariciar as canelas dele. Parecia enamorada. O pai fazia questão de retribuir a atenção. Punha-a para dormir e não saia do quarto enquanto ela não estivesse dormindo a sono solto. Com o tempo ele começou a se esquecer daquele apego da menina. Então, um dia, ela criou coragem e pediu a uma das freiras para ver como era a embalagem dos preservativos. A freira desconfiou, mas considerou melhor estimular a prevenção. Alguns dias depois o homem que vendia revistas lhe disse em segredo que aquilo não era nem bom nem necessário. E que podia revender dando-lhe alguns trocados. Mas para isso ela precisava aprender a tirar das freiras uma ou duas fieiras completas.

Não era de juntar-se às pessoas, não era de brincar com os meninos que corriam pelas ruas enlameadas. Eles corriam girando aqueles arcos de barris, tocando-os com uma lasca de madeira escura. Não era de brincar com as meninas que batizavam bonecas, ou se expunham ao final da tarde, sentadas sobre a guarda da ponte e pondo a língua para os homens que passavam cansados, elogiando-as, formulando convites para carinhos na cama.

Não! Ela não se juntava a ninguém, preferindo olhar, distraída, para os cães que talvez superassem em número aos humanos que por ali consciente ou inconscientemente cumpriam os dias que a generosa vida lhes riscara nas estrelas. Tardes de sol se pondo avermelhado, avermelhando os telhados de zinco, os terreiros e as ruas de terra nua cortadas por esgoto a céu aberto. Era o pó que avermelhava o sol, ou era o sol vermelho que coloria a poluição, pondo franjas escarlates na fumaça negra das chaminés fabris?

O pai já havia desaparecido quando Zeneide começou a inchar. O homem da banca passara a ser defunto por obra de uma bala perdida. Os meninos riam dela e abaixavam as calças para ela, insultando-a em público. Entre as meninas havia sussurros e as mais ousadas apontavam-na com o dedo em riste, chamando-a de santinha de bordel.

Quando a criança nasceu, veio ao mundo deficiente. Os pezinhos tortos, as perninhas frágeis, sendo uma visivelmente menor que a outra.

Zeneide chorou durante quase todo o primeiro ano. Com a criança no colo, ou acavalada em seu quadril, iniciou as novenas implorando a todos os santos pela cura milagrosa. A criança não andou antes do segundo ano. Nunca andaria como as outras crianças. Praticamente arrastava-se.

No início da noite, enquanto a menina dormia, Zeneide ia à igreja, implorar aos santos uma intervenção junto ao destino. Queria que a filha pudesse pelo menos andar, mesmo que continuassem tortos os pezinhos. Bastava corrigir a atrofia dos músculos.

Ia à igreja no início da noite a conselho do padre. Ele queria poupá-la dos falatórios das carolas na hora da reza do terço. Eram pias demais as carolas. Elas acreditavam que a presença de Zeneide na igreja, na hora da reza, era um insulto ao Santíssimo, a fonte do amor e da misericórdia. E não era conveniente que ela continuasse a vir à sacristia. O padre era o pastor de todas as almas e não podia se dedicar a uma só ovelha. Tanto mais uma ovelhinha que vivia perdendo coisas por ali.

Por ser cabeça dura Zeneide nunca entendeu o que o padre quis dizer com aquele ‘perdendo coisas por ali’. Mas o padre era inteligente e sabia o quanto fora exposto ao constrangimento perante a freira. Sentira-se instado a explicar o aparecimento da embalagem contendo uma camisinha entre seus pertences. Tinha a marca de distribuição feita pelas freiras. Zeneide a deixara cair na nave do templo!

Assim morreu Zeneide. Alguém há de contar como sobreviveu a filha, que ficou sozinha aos dois anos de idade em nosso mundo tão pleno de amor.