quarta-feira, 24 de junho de 2009

O viajante solitário e a menina sonhadora


Terminava o entardecer.

Solto, o cavalo lentamente se afastou das imediações da carroça e se embrenhou no roseiral. Tinha esse direito. Depois de uma longa jornada puxando a carroça podia livremente escolher onde colher seu alimento e saciar a sua sede. E por reconhecer esse direito foi só quando começou a escurecer e a Lua surgiu esplendorosa no céu que o dono da carroça se preocupou em defendê-lo, se preciso fosse.

Embrenhou-se também entre as roseiras em flor. Milhares de roseiras, milhões de rosas vermelhas, amarelas, rosas rosas. Talvez houvesse entre elas as rosas azuis. Fosse verdade o que o carroceiro dizia para encantar as crianças e haveria ali, naquele ponto isolado do mundo, uma gruta, um cenário de encanto onde os seres do jardim trocavam prosas falando de amor. O desejo de que as histórias de encantamentos que contava para as crianças fossem verdades vieram fortes. E ele se deixou encantar pelo voo barulhento de uma mamangava que beijava aleatoriamente as flores.

Voou a mamangava de repente. O carroceiro a seguiu com os olhos. E seus olhos se depararam com um linda menina sentada sobre um uma taipa de pedra na base de uma pedra muito maior, recoberta por camadas de areia encardida. A menina oferecera algumas espigas de milho ao cavalo. Pouco à frente banqueteava-se o animal. Sentada, ela debulhava outras espigas, armazenando os grãos de um amarelo ouro em seu regaço. O luar emprestava uma cor levemente amarela a todo o cenário de sorte que os lábios carmim da garota a tornavam simplesmente linda.

- É o seu cavalo? - ela perguntou ao carroceiro que emudeceu diante de tanta beleza.
O cavalo aproximou-se lentamente do carroceiro que abrindo as palmas das mãos acariciou o focinho.

- É! - disse finalmente à moça – Um velho amigo de caminhos. Quer uma ajuda? No mínimo terminaremos sua tarefa em menos tempo.

- É claro que quero uma ajuda. Mas não é uma tarefa. Estou apenas debulhando o milho para o pilão. Alimento os pássaros com o farelo.

- Como pode estar tão isolada agora que a noite chegou?

- Ah! Eu me distraí. Vi quando você organizou seu acampamento. Olhei, vi a carroça e imaginei que estaria com fome.

- Por que imaginou que eu estivesse com fome?

-Não sei explicar. Apenas imaginei. Você vem de longe e eu sempre sinto fome quando faço uma viagem assim, longa.

-Viaja muito?

- Uma vez. Faz tempo, era muito pequena.

- E como sabe que sente fome quando viaja?

- Não sei. Eu sinto que sinto fome. Só isso.

- A quem pertence o roseiral?

- Ao bispo. Meus pais cultivam trigo para ele do outro lado. Descansa por aqui amanhã?
- Amanhã? Não posso?

- Claro que pode. Caso fique vou bordar um estandarte para sua carroça.
- Não tenho um estandarte.

- Fica bonito e chama atenção. Igual carroça de circo.

- Não é uma carroça de circo. É um teatro ambulante.

- Gosto também. Leva-me com você.

- Não vai chorar de saudades de seus pais?

- Vou. Eu vou chorar quando as saudades apertarem.

- Então não deve ir muito longe.

- Então eu não vou.

A menina se pôs em pé segurando o avental que aparava os grãos de milho. Não era muito alta e a pele era quase jambo. Com os olhos em chispas disse:

- Então eu não vou com você. Espero passar quem também chore quando a saudade aperta.

Naquela noite o carroceiro não dormiu direito. Achava que talvez estivesse enlouquecendo, que não tinha visto a moça, que tudo aquilo era magia ou loucura pura e simples. Mesmo sem dormir, manteve-se deitado sobre uma espécie de lona, no chão, na posição fetal.

No dia seguinte ele confirmou a existência da pedra e encontrou grãos e palhas de milho onde estivera a moça. Passou grande parte do dia arrumando a carroça. Ao meio dia assou um pedaço de carneiro e comeu da carne com um pouco de vinho. Permitiu ao cavalo que permanecesse solto e o cavalo não se afastou muito.

Depois do almoço se pôs a treinar as mãos preparando-se para a execução de mágicas simples. E foi quando viu a moça pela segunda vez, agora em plena luz do dia. Ela trazia nas mãos um pano colorido.


- Quer deixar sua carroça mais bonita? - ela perguntou rindo.

- Impossível.

- Claro que fica muito mais bonita com um estandarte. Trouxe para você fazer o desenho. Eu bordo depois.

- Está bem. Faço o desenho. No próximo verão você terá terminado de bordar. Passo por aqui e recebo o estandarte.

- No próximo verão passamos por aqui. Mas o estandarte já estará tremulando na carroça há muito tempo.

- Quem é você? Alguma fada? Tenho dúvidas sobre se realmente existe.

- Isso não importa muito porque eu sei que você existe. Saímos pela manhã?

- Saímos pela manhã. E quanto a seus pais? Tomarão as providências e seremos pendurados em uma gaiola no primeiro vilarejo.

- Meus pais já tomaram suas providências. Estou por minha conta.

- Não creio que a maltrataram.

- Claro que não. Meus pais morreram queimados.

- Não disse que trabalham no trigal?

- Disse a um estranho. Era um tolo. Desapareceu assim que surgiram os primeiros raios de sol nesta manhã. A você eu conto, Chorei muito. Muito mesmo. Não me arrependo, mas eu estava errada. Aquela dor inenarrável transformou-se nas chamas que amoleceram as correntes que me prendiam. E foi possível partir os elos. Agora é assim: indo com você, vou chorar quando a saudade apertar. Ficando aqui, o bispo vai me dar em casamento. Eu quero ser livre. Voar como os pássaros. Sonhar os meus sonhos.

- Temo que indo comigo tenha pesadelos.

- Tão ruim assim?

- A solidão é companheira. Prende a pessoa. Emudece.

- Não me baterei de frente com ela. Chegou primeiro e tem todo o direito de ficar com você sempre que desejar.

- Se o bispo deseja casar você, seremos perseguidos do mesmo modo.

- Se eu for vista como sendo um jovem, passaremos por todas as barreiras.

Então o carroceiro subiu no tampo da carroça e movimentando os braços, recitou:

Eu a levarei por meus caminhos.
Dormirás sob as estrelas
Sentirás falta de pão.
Tens a proteção de vosso bispo.
Talvez não precise disso.
Por que quer tal provação?

Ela aplaudiu entusiasmada.

Ele, meio desconcertado, sentou-se sobre uma das grades laterais da carroça. Aproximando-se, ela pôs a mão sobre a grade da carroça. Disse:

- Eu só tenho medo de que você me entenda e, tendo me entendido, não me compreenda.

- Ah! - fez ele levantando as duas mãos para o céu.

Desceu da carroça, cortou pelo cabo uma rosa. Aproximando-se pretendeu prender a flor nos cabelos dela. A tentativa mostrou-se fracassada e ele entregou o mimo nas mãos dela que sorriu.

- No primeiro povoado você faz contato com um alfaiate e ele fará uma roupa de rapaz para mim. Ficarei oculta no fundo da carroça até você voltar com a roupa.

- Posso mentir para o mundo. Menos para mim.

- Não precisa mentir para você. E eu não vou mentir para mim.

- Quero merecer você.

- Tudo bem. Aprecio e aprovo. Entendo os efeitos da visão de minhas formas sobre você e sendo sincera é o que mais mexe comigo. Tudo o que espero é que eu não tenha apenas as minhas curvas como atrativos.

- Estamos pondo a carroça na frente do cavalo.

- Estamos sendo adultos. Não quero estar ao seu lado e me escondendo de você. Mas espero que espere até que eu esteja pronta.

- Você é uma garota muito corajosa.

- Eu sou uma menina mulher.

Curvando-se ele a beijou nos lábios. Um beijo espontâneo e rápido, ao qual ela não teve tempo para retribuir. Corada abaixou os olhos e girou nervosa a flor que tinha nas mãos. Levantando os olhos para os olhos dele, perguntou.

- Partimos pela manhã?

- Partimos pela manhã.

Ele arrumou um ninho para ela sobre o tampo da carroça, Usou para isso braçadas de paina cobertas por uma espécie de lona. Usou sua capa de chuva para cobrí-la. Conversaram até muito tarde sentados próximos a uma fogueira ateada ao lado da carroça.

Na manhã seguinte ele abriu uma bolsa de couro, tirou um maço de pergaminhos sobre o qual riscou as medidas dela. Mediu o pescoço, o busto, o comprimento dos braços e das pernas, mediu os quadris. Ela ria o tempo todo procurando confundí-lo. Mesmo confuso terminou de tomar as medidas anotadas sobre o desenho de um rapaz cujo rosto era apenas uma bola irregular.

A carga adicional quase não foi sentida pelo cavalo, acostumado a puxar a carroça mesmo em meio a muita gente nas ruas. Não era de galope, nem mesmo de trote. Andava no passo como quem não tem o pai na forca. Ao passarem por caminhos íngremes , os dois desciam da carroça. Ela caminhava muitas vezes na frente, outra vezes ao lado, divertindo-se lépida pelos campos. Ele emparelhava-se com o cavalo ajudando a puxar. Por isso, por volta do meio-dia, quando pararam para o almoço, ele estava com o rosto banhado em suor. Carinhosa, ela acocorou-se ao lado dele e com a franja da blusa secou o rosto dele.

Quando o sol amainou seguiram viagem, ele na frente, sobre a carroça, e ela recostada sobre o colchão de paina, na caixa da carroça. Ele calado e ela cantando. Algumas vezes fazendo perguntas e rindo.

Permaneceu oculta no fundo da carroça pelo tempo que se fez necessário para a confecção de sua roupa de rapaz. Nunca gostou da camisa nova. Por isso, sempre que se encontravam viajando em campo aberto, seguros de que não os seguiam, usava uma das camisas dele. Era sempre uma camisa usada, mas limpa. Ficava grande para ela que soltando os cabelos ficava muito atraente.
Ao chegarem a um vilarejo, paravam a carroça na praça principal. Ela batia em um bumbo cantando, chamando o povo para vir à carroça, ouvir poesias e ver o grande mágico em ação. As guardas da carroça eram descidas e o tampo se transformava em um tablado simulando um palco.

Durante as apresentações ela passava entre as pessoas recolhendo donativos. Era então um mocinho de feições finas, um rapaz afeminado, divertindo muitas vezes os próprios guardas do bispo. Aquelas aproximações o preocupavam. Desempenhava suas funções mantendo sempre um olho sobre ela. Quando eventualmente a perdia entre a turba, seu coração se descompassava.
- Não pretendo prendê-la – ele disse a ela quando em viagem tomavam água às margens de um lago.

- Meu medo é que me deixe ir – respondeu ela.

- Minha vontade é que possa ir e voltar.

A tarde estava morrendo. Olhando para os olhos dele ela tirou lentamente a camisa, abriu e tirou as calças. Nua mergulhou sentindo o prazer de nadar no fundo do lago, entre peixinhos dourados.
Ele estava com a capa de chuva com a qual a envolveu quando desejou sair da água. O nariz e os olhos estavam vermelhos, os cabelos molhados, os lábios estavam pálidos. A noite havia caído. A Lua veio com sua luz fraca sobre o acampamento. Ao lado do fogo, que ele avivou, se deixaram ficar inicialmente sentados no chão.

A capa caiu quando ele a beijou sendo correspondido com emoção e tremores. A Lua fechou os olhos. A capa caiu e serviu de cama.

Depois daquela noite ele levou a carroça a um ferreiro e contratou um sapateiro para juntos cobrirem a carroça com uma capa removível de couro. Não permitiu que ela continuasse viajando a céu aberto durante as horas mais quentes do dia. O cavalo ganhou um parceiro porque a carroça ficou um pouco mais pesada. Havia agora na tralha duas novas malas repletas de fantasias que os dois usavam em pantomimas, divertindo adultos e criança por onde passavam. Com menos da metade da idade dele, ela aos poucos conseguiu substituí-lo nos números que exigiam maior esforço físico. Declamavam, dançavam, simulavam tombos e apresentavam esquetes criticando o bispo, sendo sempre muito aplaudidos.

Depois daquela noite ela passou a adormecer sempre aninhada nos braços dele, deitados muitas vezes diretamente sobre a relva, nas noites de calor.

O que se dizia nos povoados naquela época era que o bispo envelhecera muito rapidamente. Corriam notícias sobre as causas de tal senilidade, mas nem ele nem ela estiveram interessados em anotar as muitas versões. Bastava-lhes saber que o corpo tem seus limites. Que a gula, a sedentariedade, a sede por vinhos e os excessos na satisfação dos apetites da carne contrariam a natureza e degeneram tanto o espírito quanto o físico.

O homem que agora administrava diretamente os interesses do bispo fora por ele adotado há muitos anos sem que ninguém jamais tivesse conseguido definir se era seu sobrinho ou seu filho. Corrupto e injusto perdia rapidamente o controle abrindo o caminho para a corrupção. Caia de uso a norma segundo a qual os pais se obrigavam a levar as filhas duas vezes aos olhos do bispo; uma vez antes de completarem um aninho e a segunda vez quando o bispo convocasse para aprontá-la para o casamento com quem da escolha do prelado, fosse obrigado a aceitá-la impura.

A descoberta da verdadeira identidade da moça causou assim poucos aborrecimentos. Pagaram o preço para a cegueira dos guardas do bispo. Em pouco, ela passou a se apresentar aos povoados sem o disfarce de rapaz. Era a mais linda dentre as mais lindas mulheres jovens de toda a região e sua beleza era um dos mais significativos pontos de atração. Ela, que já sabia bordar, aprendeu a executar mágicas, decorava textos e declamava poesias. No tablado em que se transformava o assoalho do carroção, dançava e fazia as graças entretendo um público cada vez maior. Era a esposa carinhosa e atenta, disposta a perdoar eventuais erros que ele pudesse cometer contra o patrimônio comum em virtude da generosidade de seu coração. Tendo olhos só para ela, só com ela tinha um diálogo constante e fluente. Publicamente mantinha seu mutismo e embora vivendo de suas atividades eminentemente públicas, era um homem de pouca intimidade.

Agora escolhiam lugarejos mais populosos para suas apresentações artísticas, o que os levou ao encontro de outros artistas que também percorriam o território em carroções com tração animal. Ela estava fascinada pelo circo. Sonhava com a possibilidade de adquirirem as lonas, os carros, as armações para a arquibancada, as cadeiras desmontáveis que circundassem o picadeiro.

E porque ele a amava, passou também a amar as coisas ligadas ao circo. Juntos contrataram artistas e alugaram os carros, as lonas, as armações para a arquibancada, as cadeiras desmontáveis que circundavam o picadeiro e todos os 'mata-cachorros', homens significativamente fortes que se encarregavam das montagens dos mastros e levantamento das lonas com o emprego de cordas e roldanas. Um grupo de artistas os antecedia nas vilas maiores percorrendo as ruas em desfiles de encher os olhos, anunciando a chegada do circo. E ele a tirou da carroça e a instalou em hospedagens confortáveis em todos os lugares por onde a partir de então passaram.

Moram na atualidade em um campo onde ela cultiva rosas. Milhares de roseiras, milhões de rosas vermelhas, amarelas, rosas rosas. Há entre elas as rosas azuis. Ele escreve histórias para as crianças desejando formar pessoas dispostas a aprender a amar.

E por falar em amar. Amam-se ainda e mais agora, quando os sonhos se misturam às saudades de sonhos realizados. De vez em quando ele ainda atrela o cavalo à carroça, ela vai se acomodar sobre as painas com forros de lona. E quando chegam naquele mesmo lado, ela se faz nua e mergulha para o prazer de nadar entre os peixinhos coloridos. Então ele a espera com a capa de chuvas, atiça a fogueira e a Lua fecha os olhos quando a capa cai.


(escrito para este blog)

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