UM SHOW PARA TAMARA
Em terras inférteis nasceu em plena luz do dia uma garotinha cujos cabelos negros vieram rebeldes e a pele chegou quase na cor púrpura. A mãe era cega. Meses antes fora dada a um cunhado, por morte do marido, um mero criado que se entregava a um e a outro pelo aluguel de seu dia.
Tinha a garota um irmão. Um menino magro cuja pele os inclementes raios de sol amorenara. O pai o tomara como seu ajudante a despeito de seu porte físico raquítico, obrigando-o a cargas equivalentes à metade do que destinava a um adulto. O tio pensava agora em usá-lo de modo mais brando, encarregando-o de cuidar de suas cabras.
Ocorre que o tio fez da nova esposa uma serviçal das duas outras e o menino era incapaz de vê-la executando as tarefas sem sua ajuda. Levantava-se pela manhã, preparava a primeira refeição para a família e varria o quintal. Punha a roupa para secar ao sol quando a mãe lhe pedia tal ajuda.
Dormiam na sala, ele, a mãe e a garotinha, sobre um tapete, porque não tinham uma cama e nesse ponto era como se ainda estivessem no deserto, onde o menino nasceu sob uma tenda. A dificuldade adicional consistia na obrigação de impedir que a criança chorasse durante a noite, irritando as outras esposas do tio. O menino cuidava disso como lhe fosse possível, mas nem sempre conseguia tal intento. A criança chorava e ele a embalava nos braços, procurado acalmá-la.
As duas outras esposas do tio eram muito ligadas uma à outra e, se não eram amigas da mãe do menino, não eram tampouco inimigas. Vinham de vidas mais requintadas, eram estudadas, inteligentes, bonitas, saudáveis. Dançavam para o marido nas noites especiais, bebiam com ele, comiam com ele, com ele se expunham aos excessos nas noites especiais. Tinham certa dose de boa vontade tentando ensinar boas maneiras à mãe do menino e riam dela por seus duros quadris e excesso de pudores.
Quando a menina completou dois anos e alguns meses o tio, aconselhado por suas duas outras esposas, decidiu levar avante seu intento de atribuir ao menino a função de pastor de cabras. A mãe, o menino e a menina foram então levados em um carro de aluguel até as terras recentemente adquiridas. E naquele lugar solitário foram instalados em uma casa relativamente confortável. Uma ou duas vezes a cada mês o tio vinha por uns dias. Trazia presentes, doces, enfeites. Ao cair da tarde procurava pelo menino encontrando-o sempre atento ao rebanho. Elogiava sua atuação e ao seu modo o confortava. Certa vez disse:
- Minhas duas primeiras mulheres são encantadoras, refinadas, e amorosas. Estou contente com elas, mas não terei herdeiros vindos delas. Sua mãe já deu provas de fertilidade. Se eu não fizer nela um filho homem, farei de você o meu herdeiro.
Quando tal assunto foi assim abordado a menina já estava com cinco anos de idade. O menino tinha oito.
- E o que pensa dar à minha irmã? – Perguntou o menino encarando o tio com olhos frios.
- Ainda não pensei. Com certeza a darei em casamento assim que chegar a oportunidade. Minha posição é garantia para ela de futuro melhor do que seria possível caso meu irmão ainda fosse cabeça da família.
Não há como apurar se aquelas declarações levaram o menino a pensar em seu próprio futuro, quanto mais no futuro da irmã. Contudo é certo que a partir de então ele passou a contar histórias tanto para a menina quanto para a própria mãe.
Com o passar do tempo suas histórias foram se enveredando para cenários de luxo, festas memoráveis ocorrendo em palácios pertencentes a reis poderosos. Mulheres muito bem vestidas, homens importantes apreciando o belo, gente se divertindo em banquetes onde eram servidas as mais finas iguarias. Orgias, adultérios, sangue, vinhos, prazeres, crimes.
Ao atingir quinze anos de idade a menina era mocinha muito bonita e sonhadora. Amava o irmão de todo o seu coração e encantava-se com ele. Também pastora de cabras, gostava de ver o pôr do Sol ao lado dele, expressando também as suas fantasias. Sua dificuldade consistia em suportar caminhadas muito longas, ou esforço físico muito exigente. Vinham lhe às faces manchas vermelhas e, ao peito, imensa dificuldade de respirar. Insistindo, desmaiava.
E foi assim que ao ser levada pelo tio a um médico, descobriu que precisava ser levada a outro médico, e desse segundo a um terceiro. Por fim, soube-se que a acometiam males do coração.
Tendo acompanhado a irmã e o tio, o menino que agora já era um rapaz, teve oportunidade de visitar várias lojas, admirando francamente as mercadorias expostas. Ao tomar ciência do diagnóstico esteve por muito tempo chorando sozinho, escondido, ainda no hospital, sentindo-se inútil. Não poderia jamais salvar a vida da irmã.
Se na região onde exercia certo poder o tio era visto por ele como um homem com certo refinamento, ele o viu claramente grosseiro na cidade grande. E não que tivesse tido a intenção de estabelecer comparações. Apenas eram gritantes as diferenças entre o tio e as pessoas que gravitavam pelos corredores do hospital, ou que podiam ser vistas nas ruas e nas lojas.
Caso desejasse realmente tentar a cura para a irmã, teria de se desgrudar do tio. Permanecendo acoplado jamais deixaria de ser um pastor de cabras sem salário e sem cultura.
Quando o tio se dispôs a voltar alegando haver abandonado seus negócios por muito tempo o rapaz anunciou sua decisão de permanecer na cidade. O tio passou a noite se lamentando em altos brados pelas dependências do hotel. Clamando a Deus e aos homens por testemunhas de sua honorabilidade e sua absoluta inocência em relação ao que pudesse sobrevir ao sobrinho. Apontava-o. Ralhava com ele taxando-o de mal agradecido por tudo o que recebera ao longo da vida. Por fim partiu ao clarear o dia levando a enteada em um carro de praça.
Empregou-se o rapaz em uma das lojas esforçando-se muito mais do que se esforçavam os demais empregados do estabelecimento. Precisava aprender de tudo, inclusive aperfeiçoar seus conhecimentos de soma e multiplicação. Precisava aprender a ler, precisava aprender a conversar, precisava aprender a se portar. E não tinha para tudo isso o futuro todo pela frente. Um único emprego não lhe daria a bolsa suficiente para a execução de seus planos. Trabalhava até altas horas em atividades alternativas. Ao nascer, o Sol o encontrava de gibão transportando mercadorias que chegavam ao mercado, incluindo carnes verdes que lhe tingiam os cabelos e lhe riscavam o corpo com sangue escorrido. A Lua da meia noite o via em bares e bordéis, trabalhando como garçom, porteiro, mocinho de recado entregando flores ou agenciando encontros. E durante oito horas, todos os dias úteis da semana, ele podia ser encontrado a serviço da loja de artigos finos.
Era ele agora um rapaz muito bonito, um moço fisicamente muito forte ainda que não corpulento nem tão alto. Bem vestido podia passar por filho de casa nobre. E era sempre muito bem vestido que se apresentava à noite nos bordéis e durante o dia na loja. Na noite ele era o mais cobiçado pelas mais belas mariposas que brigavam por ele. Na loja atraia os olhares das mais lindas mulheres da sociedade chique. Nas mesas de jogos tornou-se em pouco tempo um dos mais refinados salafrários.
No decorrer de poucos anos tinha já uma boa soma obtida com muito sacrifício e um cabedal de conhecimentos apreciável. Foi quando se apaixonou perdidamente por uma das garotas de um dos bordéis da cidade. A paixão foi devastadora. Intensa, queimando como em um alto forno nas fundições. A menina, porque pela idade não era muito mais do que uma menina moça, o cobriu de mimos, carinhos, presentes, cobrando em contra partida a liberdade sem o proibir diretamente de ser o que sempre havia sido. Dominado por aquela paixão passou a dispensar empregos. Já não acordava tão cedo para enfrentar o serviço pesado no mercado. Como empregado da loja chique manteve a mesma eficiência. Mas as primeiras horas da noite eram ociosas e ele as consumia rodeando meses de jogos. Durante esse tempo ela exercia a profissão entregando-se às orgias que o enciumavam a tal ponto que ele sentia a alma devorada por um milhão de dragões.
Nessa fase conselhos seriam inúteis.
Foi preciso levar um tombo de arrebentar, para acordar. A amante o deixou de um dia para outro e quase a zero em termos financeiros. Simplesmente bandeou-se com destino ignorado em busca das luzes que, ao que se dizia, eram mais coloridas e promissoras e não estavam assim tão longe, bastando uma viagem em transatlântico.
As quedas de um homem geralmente se fazem em estágios. Com ele aconteceu dessa maneira, afundando-se mais a cada revés sofrido. Por último restava-lhe o emprego na loja, as roupas finas que usava e os conhecimentos para sobreviver e, de certo modo, afundar-se ainda mais na escuridão das perdições.
De olho nele uma das damas da mais alta classe local passou a seduzi-lo com extrema habilidade. Tinha a senhora todas as informações a respeito do moço bonito, conhecia sua precária condição financeira, sabia de seus apetites, ouvira falar da mãe cega e da irmã cardíaca por quem ele se lançara ao mundo em busca do dinheiro que acabara perdendo por seus desatinos. Tinha a senhora especial interesse em realizar suas próprias fantasias as quais a levavam a sonhar com o jovem de boa estampa e fama de especialista nas artimanhas do amor.
No mais absoluto sigilo passou a freqüentar os porões dos ambientes mais sofisticados que até então sua imaginação fora incapaz de idealizar. Corria evidentemente riscos de vida em caso de descobertas suas aventuras. A mulher fazia jogo duplo para os quais ele não estava preparado. Ao menor sinal de complicações ela acionaria seus mecanismos de auto defesa e ele seria entregue aos cães de guarda do marido que obviamente o matariam sem permitir que o caso viesse a público transformando-se em um escândalo comentado tanto nos becos mais sórdidos quanto nos mais refinados salões.
Sabe-se lá por quais caminhos a luz que o abandonara voltou a brilhar iluminando sua mente e seu coração. Uma velha cortesã o tomou pelo braço e o conduziu a seus aposentos numa das madrugadas excitantes. Com sua voz rouca e sedutora pondo-se por costume em pose erótica sobre o catre lhe disse:
- Aprenda a perceber que o show envolve. O show desenvolve em você outra pessoa. Transforma o seu viver. Ilude pra valer. Depois, como a fumaça de um cigarro, se evapora. E embora você chore lágrimas de sangue, só conseguirá os sons dos cantos que o tangem pelos caminhos da perdição. Tudo, mas tudo mesmo, não passa de ilusão. Tudo como uma linda cena de cinema. Tudo falso e na verdade inexistente. Tudo virtual.
- Pois eu não vejo o show assim tão pernicioso – pensou ele sem nada dizer.
Os primeiros shows que a assistira aconteceram na casa do tio, quando era muito pequeno. Nada entendia a respeito daqueles jogos de sedução. Só depois, quando as longas horas de vigília no pastoreio permitiram meditar, viu claramente que para elas e para o tio as algazarras produziam seus efeitos. Que tipo de vida teria aquele trio sem os jogos de sedução? Certamente a vida vazia que vira muitas vezes nos olhos mortos da mãe. E o show não tem a função de eternizar momentos. A ele compete predispor à vida. O show transforma realmente. Faz da gente outra pessoa. Há uma evolução, ou uma involução, na mente e no espírito. Se a pessoa evolui ou se degrada, essa é outra questão.
As considerações sobre os shows permaneceram com ele por vários dias, ainda que ele apenas ocupasse os seus pensamentos em torno de shows eróticos. Moço falante, galante, alegre, um autêntico jogador que passara a acreditar que a vida é uma sucessão de pequenas apostas, mantinha-se calado a respeito daqueles pensamentos. Não desejava que alguém se divertisse à custa de seu esforço filosófico. Além do mais sentia que aqueles raciocínios não o levariam a parte alguma. Era evidente que as pessoas em geral gostavam de shows eróticos, embora seja difícil encontrar quem assuma que trás consigo essa sede. Mas essa verdade não o levaria a parte alguma.
A luz, entretanto, queria guiá-lo. Tirando talvez de um pedaço de suas próprias histórias, concebeu num estalo a idéia de organizar shows promocionais que o ajudassem a vender produtos de arte. Tâmara, a irmã, sonhava com bailados, queria ser dançarina. Com tal objetivo esteve sonhando muitos dias e amealhando pessoas com as quais compartilhava tais sonhos. Eram músicos, alfaiates, artistas plásticos, gente desse meio. Quando considerou que o projeto seria viável o ofereceu ao proprietário da loja para quem ele trabalhava. A idéia vingou. Arregimentaram bailarinas, músicos, fornecedores de alimentos e bebidas, locaram um salão que foi inteiramente reformado e mobiliado. Mercadorias foram importadas para comercialização exclusivamente durante os shows. Convites foram expedidos. A competição entre os endinheirados foi o fecho de ouro para o sucesso do empreendimento.
Os shows passaram a ser freqüentes. O rapaz passou a ter participação financeira nos resultados e em pouco tempo a ser ele próprio um importador de mercadorias, assumindo os negócios por conta e risco. Rico novamente foi buscar a mãe e a irmã.
- Começam agora os preparativos de um show para Tâmara – pensou ele ao sair da cidade em carro próprio com motorista particular.
O tio o tratou como trataria a um bem nascido endinheirado. Ofereceu um banquete e clamou pelo testemunho de Deus e dos homens sobre a intenção de seus gemidos quando o moço resolveu se emancipar. A estratégia, alegou, foi usada para ver até onde o sobrinho realmente desejava progredir por conta própria. Desejo que, aliás, o tornara ainda mais orgulhoso de alguém que trazia o sangue da família nas veias. O moço sentiu um desprezo tão grande pelo tio que por pouco não vomitou.
Na cidade grande realizou o desejo da irmã patrocinando a ela aulas de danças. Ela se fez bailarina talentosa, assumindo logo o lugar de primeira bailarina do corpo de baile. Linda, atraiu inúmeros pretendentes. Amasiou-se com um rico importador cujo amor não chegou ao ponto de levá-los à cerimônia matrimonial. Tâmara levou seu corpo de baile aos mais famosos cabarés e seu corpo de mulher perfumou o leito de sofisticados empresários do mundo dos grandes negócios. Faleceu, entretanto, poucos anos depois interrompendo uma série de shows promocionais intitulados “Um Show Para Tamara”.
Ele manteve a mãe servida por criados e criadas, morando em palacete requintado. Cega, taciturna, pouco mudou depois da morte da filha. Foi uma pessoa machucada pela vida a tal ponto que pelo menos aparentemente nunca esperou nada que não fossem lambadas doloridas.
O moço, entretanto, sentiu uma parte de sua vida evaporar com a morte da irmã. Por algum tempo imaginou sinceramente que não poderia nunca mais pôr seus pés em um ambiente onde houvesse danças e ofertas de corpos ou objetos. Seus dias eram longos, suas noites intermináveis. Amigos dos primeiros dias vieram depois de passado o tempo do luto e o convenceram a continuar na estrada. Promoveram, sem que ele soubesse, uma espécie de concurso para a escolha de uma bailarina que substituísse Tâmara no corpo de baile. A escolhida havia se apresentado com o nome de Tayma. Tinha a beleza plástica de Tâmara, mas mais jovem e mais alegre e mais sensual. Soube que aceitando a vaga teria de se apresentar com o nome da Tâmara. Concordou com olhos felizes, pois sabia do sucesso obtido por Tâmara e a invejara enquanto aprendia a dançar há poucos anos. Guardou consigo, entretanto, um fato: era apaixonada pelo irmão de Tâmara.
Seis meses depois, quando Tayma já havia se apresentado em vários shows, os amigos conseguiram trazer o moço para vê-la dançar.
Casa lotada. Artigos importados decorando o ambiente de luxo e esplendor. Garçons servindo as mais finas iguarias. Lindas mulheres vestindo modelos exclusivos. Luxo, luzes, luxo, requinte. Todos os sonhos de Tâmara.
Em um ponto especial ao lado da pista de dança, o puseram em uma das mesas mais enfeitadas. Ele muito bonito, bem vestido, rodeado por amigos fiéis e lindas garotas. Tayma surgiu em meio a uma nuvem multicolorida acompanhada em seguida por outras bailarinas e pelos músicos, apresentando-se na pista de dança. Ele acompanhou todos os passos e gestos da moça, simplesmente fascinado. Ela se sentiu encantada e ao mesmo tempo perturbada pela presença de um moço que lhe pareceu um príncipe elegante, bonito, seu bondoso patrão. Temeu vagar nas nuvens e errar tudo em sua apresentação.
Tayma estava dançando. Sonhador, ele a imaginou dançando exclusivamente para ele. O sonho era bom, encantava seu coração. Mas a realização da fantasia exigia uma nova aposta. E ele sabia que não tinha as cartas. O passado o prendia aos antros, tornando-o indigno daquela moça linda. Jamais ousaria tocá-la.
Tayma estava dançando. Sonhadora, ela o imaginou afagando-lhe os cabelos e pronunciando juras de amor sob um caramanchão florido. Mas a realização da fantasia exigia mais do que ela podia conseguir: apagar a origem pobre, carente de instrução aprimorada. Ele era rico, tinha aos seus pés as mais lindas mulheres bastando estalar um dedo. Jamais haveria de se interessar por ela.
Um show para Tâmara. Um show de encantos.
Uma oportunidade para você participar de apostas em ambiente repleto de luz, cores, luxo, iguarias, danças e festas, e adquirir produtos importados exclusivos.
Um show Para Tamara. Uma oportunidade para um moço escolher entre acovardar-se em razão de um seu passado de erros e acertos, ou fazer nova aposta na generosidade da vida tomando por esposa uma jovem linda e apaixonada por ele
Um show para Tâmara. Uma oportunidade para Tayma escolher entre acreditar que provir de origem humilde não é mancha e apostar em suas chances tentando um amor verdadeiro e bom, ou continuar dançando para todos e para qualquer endinheirado, em todos os lugares por onde o sucesso pessoal a conduzir.
FIM