MARTA
Em nossa casa a primeira pessoa a pronunciar o nome de Marta foi minha mãe. Da janela, de onde me descrevia as alterações ao redor, disse que a frente da casa tinha agora a cor verde. Perguntei se gostaríamos do verde e ela, curvando-se ao meu lado, disse num sorriso triste:
— A casa foi alugada. A nova moradora nos mostrará se gostaremos ou não da nova cor.
— Quem alugou a casa?
— O nome dela é Marta!
Quase todas as informações eram colhidas no ponto de ônibus ou na mercearia. Nosso bairro era antigo, distante, e estava contaminado por uma febre que já havia levado dali os moradores tradicionais. Onde no passado os imigrantes jogaram os alicerces das primeiras casas de nossa cidade, as máquinas, aplainando, criaram um vasto campo desolado para a construção do aeroporto. Enfrentando um processo de desapropriação injusto os moradores arribaram para locais ainda mais distantes. Nós permanecemos ali porque minha mãe não queria morrer em outro lugar.
Minha irmã não havia voltado para a casa da patroa. Do quarto disse qualquer coisa que não entendi direito. Ela agredia resmungando e em geral muito zangada. Depois minha mãe disse a ela que talvez Marta soubesse que o bairro estava condenado. Teria alugado a casa por pouco tempo.
A patroa de minha irmã a cobria de mimos. Fazia dela a beneficiária das roupas da filha, quase sem uso, e a ela vendia pela metade do preço algumas utilidades ainda na embalagem original. Minha mãe tentava ensinar lealdade à minha irmã fazendo notar que não era justo vir por uma noite e não voltar ao trabalho na manhã seguinte. Dava de ombros, insistia em lembrar seu desejo de trabalhar no comércio, transformar-se em balconista, esquecer para sempre que fora doméstica. Eu torcia francamente por ela, o meu coração ficava bastante oprimido em razão daquela forma de pensar de minha mãe. A nossa lealdade para com os que possuíam alguma coisa nunca fora até então correspondida e embora a patroa de minha irmã fosse um tipo mão aberta, o seria enquanto lhe interessassem os préstimos da empregadinha. Eu também sonhava com o dia em que minha irmã pudesse ir linda para o trabalho, produzida como nas noites em que saia para dançar.
Marta estava produzida quando a vi pela primeira vez na moldura da porta de nossa casa. E esteve produzida todas as vezes que dali para frente a vi.
Apareceu mais amiúde depois que minha irmã deixou de vir por uma noite ou duas seguidas. Depois da segunda semana minha mãe se pôs aflita. Marta saiu com ela dali para frente enquanto havia esperança de encontrarem minha irmã em algum hospital, alguma delegacia de polícia, algum antro. Depois foi com minha mãe procurar por minha irmã no necrotério.
Marta apreciava o infinito. No imenso descampado feito pelas máquinas para a construção do aeroporto, punha-me no chão, sentava-se ao meu lado nas noites cálidas enfeitadas por estrelas. Dizia que muitos daqueles pontinhos de luz provinham de corpos luminosos que há milhares de anos já não existiam.
— Lá você está vendo uma coisa que não existe!
— Como não existe se estou vendo?
— Está vendo somente o efeito. Somente a luz que um dia se produziu no universo. A luz que por muito, muito tempo ainda, continuará orientando os caminhantes por terras e por mares.
Foi Marta quem mais se alegrou quando ganhei minha cadeira de rodas. Mais até do que minha mãe, que ao longo da vida o que mais fez foi chorar.
— Agora você pode aprender a usar as mãos movendo as rodas de sua liberdade de ir e vir – disse-me Marta ao me por sobre a cadeira.
E eu, que nasci sem minhas duas pernas, deixei de ser um toco de gente.
Ainda vejo Marta quando vejo o verde. Amo essa cor.
E ainda é a luz de Marta quem me orienta e conduz.
Em nossa casa a primeira pessoa a pronunciar o nome de Marta foi minha mãe. Da janela, de onde me descrevia as alterações ao redor, disse que a frente da casa tinha agora a cor verde. Perguntei se gostaríamos do verde e ela, curvando-se ao meu lado, disse num sorriso triste:
— A casa foi alugada. A nova moradora nos mostrará se gostaremos ou não da nova cor.
— Quem alugou a casa?
— O nome dela é Marta!
Quase todas as informações eram colhidas no ponto de ônibus ou na mercearia. Nosso bairro era antigo, distante, e estava contaminado por uma febre que já havia levado dali os moradores tradicionais. Onde no passado os imigrantes jogaram os alicerces das primeiras casas de nossa cidade, as máquinas, aplainando, criaram um vasto campo desolado para a construção do aeroporto. Enfrentando um processo de desapropriação injusto os moradores arribaram para locais ainda mais distantes. Nós permanecemos ali porque minha mãe não queria morrer em outro lugar.
Minha irmã não havia voltado para a casa da patroa. Do quarto disse qualquer coisa que não entendi direito. Ela agredia resmungando e em geral muito zangada. Depois minha mãe disse a ela que talvez Marta soubesse que o bairro estava condenado. Teria alugado a casa por pouco tempo.
A patroa de minha irmã a cobria de mimos. Fazia dela a beneficiária das roupas da filha, quase sem uso, e a ela vendia pela metade do preço algumas utilidades ainda na embalagem original. Minha mãe tentava ensinar lealdade à minha irmã fazendo notar que não era justo vir por uma noite e não voltar ao trabalho na manhã seguinte. Dava de ombros, insistia em lembrar seu desejo de trabalhar no comércio, transformar-se em balconista, esquecer para sempre que fora doméstica. Eu torcia francamente por ela, o meu coração ficava bastante oprimido em razão daquela forma de pensar de minha mãe. A nossa lealdade para com os que possuíam alguma coisa nunca fora até então correspondida e embora a patroa de minha irmã fosse um tipo mão aberta, o seria enquanto lhe interessassem os préstimos da empregadinha. Eu também sonhava com o dia em que minha irmã pudesse ir linda para o trabalho, produzida como nas noites em que saia para dançar.
Marta estava produzida quando a vi pela primeira vez na moldura da porta de nossa casa. E esteve produzida todas as vezes que dali para frente a vi.
Apareceu mais amiúde depois que minha irmã deixou de vir por uma noite ou duas seguidas. Depois da segunda semana minha mãe se pôs aflita. Marta saiu com ela dali para frente enquanto havia esperança de encontrarem minha irmã em algum hospital, alguma delegacia de polícia, algum antro. Depois foi com minha mãe procurar por minha irmã no necrotério.
Marta apreciava o infinito. No imenso descampado feito pelas máquinas para a construção do aeroporto, punha-me no chão, sentava-se ao meu lado nas noites cálidas enfeitadas por estrelas. Dizia que muitos daqueles pontinhos de luz provinham de corpos luminosos que há milhares de anos já não existiam.
— Lá você está vendo uma coisa que não existe!
— Como não existe se estou vendo?
— Está vendo somente o efeito. Somente a luz que um dia se produziu no universo. A luz que por muito, muito tempo ainda, continuará orientando os caminhantes por terras e por mares.
Foi Marta quem mais se alegrou quando ganhei minha cadeira de rodas. Mais até do que minha mãe, que ao longo da vida o que mais fez foi chorar.
— Agora você pode aprender a usar as mãos movendo as rodas de sua liberdade de ir e vir – disse-me Marta ao me por sobre a cadeira.
E eu, que nasci sem minhas duas pernas, deixei de ser um toco de gente.
Ainda vejo Marta quando vejo o verde. Amo essa cor.
E ainda é a luz de Marta quem me orienta e conduz.
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