quinta-feira, 15 de julho de 2010

O CARROSSEL

O CARROSSEL



A porta de entrada, ainda que jamais escancarada, ela a encontrou sempre aberta necessitando apenas de um leve toque para afastar a folha e entrar. Em poucos dias familiarizou-se com o ambiente e com o inquilino a quem se habituou a vir quase todos os dias. Parecia-lhe ser um homem mais feliz do que infeliz. Passava muito tempo escrevendo. Quando não o via diante do monitor do micro era porque acarinhava as flores nos fundos do chalé. Se não o via em parte alguma nos arredores, o coração se inquietava, ela se consumia em mau humor que precisava ocultar. A ele dizia chorosa que o coração se enchia de preocupações, mas o que realmente lhe devorava a alma eram os ciúmes.

Via a alegria nos olhos dele em muitos momentos e com freqüência tinha absoluta certeza de que em parte a alegria lhe vinha em razão de sua presença. Ocasionalmente ele a levantava abraçando, rodava com ela negando-lhe por brincadeira os lábios para o beijo eufórico. Ela então vibrava intensamente e rodando suspensa nos braços dele fechava os olhos para sonhar girando num imaginário carrossel do amor.

Certas coisas que ele falava ela não compreendia, mas gostava de ouvir. Uma vez lhe falou sobre a mulher que passou com uma carroça muito carregada, carregada a tal ponto que em determinados trechos da trilha precisava ajudar puxando a carga pela corrente ao lado dos burros. Ela nunca soube se ele havia visto tal mulher com a carroça, e, se a vira, se a estava elogiando ou lastimando-lhe as escolhas. Era algumas vezes brincalhão como quando contou sobre a mulher que abraçou uma foca ao desejar sair para a areia, na praia.

Tinha uma coisa de bom. Sempre a fazia sentir-se pertencente e jamais se escondia das pessoas quando em passeios com ela. Nisso diferenciava-se da maioria dos homens com os quais já havia se relacionado e que não eram poucos apesar de sua pouca idade. Nos primeiros dias mentira para ele dizendo-lhe que dissera aos pais que passaria a noite na casa do namorado. De outro modo ele a teria levado para casa a despeito da noite escura e muito fria. Desmentiu alguns dias depois, sem ser pressionada a fazê-lo, pois ele nunca mais demonstrou preocupação pelo giro dos ponteiros arrastando as horas para dentro da noite. Mas a surpreendeu presenteando-a com uma flauta doce. Disse-lhe que não era difícil aprender. Soprando uma flauta, dissera-lhe ele, você será aos meus olhos um símbolo dos novos tempos. Ela pediu explicações. Estavam em um parque, sobre o gramado de um verde muito escuro aparado, próximos ao lago. Ele a levantou nos braços e girou com ela num ritmo quase alucinante, de sorte que ao deixá-la sobre o chão firme, precisou ampará-la para não cair como acometida por uma vertigem. Então a fez deitar-se e beijando-lhe os olhos disse:

-- Ao longo de milhares de anos, religiões e filosofias tornaram inevitáveis os movimentos feministas. Você pertence a uma nova humanidade que está surgindo, e, ainda que não saiba disso, anuncia a nova era ao seu modo.

-- Mas eu não sou feminista.

-- Não!Claro que não. Você é feminina.

-- Gosta assim?

-- Claro!

-- Então gosta de mim?

-- Por que não?

Ela sentia que sim. Fosse de outro modo não seria tão bom rolar com ele sobre o tapete da sala, nas noites mais quentes, arrepiando-se com os toques dos lábios e dos dentes dele mordiscando-lhe o lóbulo, a cavidade e a área posterior da orelha. Não! Não era como eram os outros quando lhe beijava a nuca e descia a mão acariciando-lhe as costas. Não era igual a ninguém quando lhe punha louca ao lhe beijar as partes internas das coxas, excitado e excitando-a sobre o carpete da sala.

O que ela não sabia é que ele se deixava vencer pelas premências da carne e por isso a tomava daquela forma. Não desejava vê-la um dia com as cargas físicas e emocionais da mulher da carroça, esquecida de amar em razão dos encargos atraídos sobre seus ombros pelos resultados dos movimentos feministas que alardeiam a libertação feminina. Ele a via menina com tanta estrada a avançar em sua caminhada e temia pelo que pudessem lhe fazer as pressões sociais, humilhando-a e levando-a a desistir de sua marcha, voltando como a foca que nunca se decidiu por ser um animal da terra ou do mar.

Tomando-a nos braços, sentia-se ele próprio como se posto por uma força estranha sobre os cavalos de um carrossel, completamente incapaz de impedir o movimento de sobe e desce no giro do tempo.

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