quinta-feira, 15 de julho de 2010

ASSIM MORREU ZENEIDE

A noite chegou preguiçosa, atrasada, depois de um dia que não queria passar.

As estrelas não apareceram logo. As nuvens espessas de pó e de fuligens desejaram poupá-las das imagens grotescas e dos guinchados do padre, exigindo dos guardas a retirada do corpo das escadarias. Eles dois, cada um segurando em um dos pés, arrastaram o defunto até um canto retirado do gramado. Cobriram com uma lona escura. Acreditavam que naquele caso a polícia técnica não se importaria com a remoção. Algumas pessoas aguardaram por mais de uma hora na esperança de que os pivetes fossem trazidos ao local pelas orelhas. Mas os próprios guardas lhes disseram que de nada adiantaria prendê-los e aos poucos os curiosos se dispersaram.

Zeneide morreu quando saia da igreja, nem soube que o Senhor a veio aliviar por intermédio dos pivetes. Nem eles desejavam atirar nela. Aconteceu. E foi somente isso, quer dizer, foi uma obra do destino, de cujos caprichosos desenhos ninguém está livre.

Foi menina danada, a Zeneide.

Arredia, calada, impossível de amestrar. Cresceu no barraco, nas imediações. Com dose anos de idade ela era dada a seguir as irmãs de caridade que por lá faziam suas rondas distribuindo alimentos, remédios, conselhos e santinhos. Ansiava então pela vinda do pai, ao cair da tarde, sentando-se no chão para acariciar as canelas dele. Parecia enamorada. O pai fazia questão de retribuir a atenção. Punha-a para dormir e não saia do quarto enquanto ela não estivesse dormindo a sono solto. Com o tempo ele começou a se esquecer daquele apego da menina. Então, um dia, ela criou coragem e pediu a uma das freiras para ver como era a embalagem dos preservativos. A freira desconfiou, mas considerou melhor estimular a prevenção. Alguns dias depois o homem que vendia revistas lhe disse em segredo que aquilo não era nem bom nem necessário. E que podia revender dando-lhe alguns trocados. Mas para isso ela precisava aprender a tirar das freiras uma ou duas fieiras completas.

Não era de juntar-se às pessoas, não era de brincar com os meninos que corriam pelas ruas enlameadas. Eles corriam girando aqueles arcos de barris, tocando-os com uma lasca de madeira escura. Não era de brincar com as meninas que batizavam bonecas, ou se expunham ao final da tarde, sentadas sobre a guarda da ponte e pondo a língua para os homens que passavam cansados, elogiando-as, formulando convites para carinhos na cama.

Não! Ela não se juntava a ninguém, preferindo olhar, distraída, para os cães que talvez superassem em número aos humanos que por ali consciente ou inconscientemente cumpriam os dias que a generosa vida lhes riscara nas estrelas. Tardes de sol se pondo avermelhado, avermelhando os telhados de zinco, os terreiros e as ruas de terra nua cortadas por esgoto a céu aberto. Era o pó que avermelhava o sol, ou era o sol vermelho que coloria a poluição, pondo franjas escarlates na fumaça negra das chaminés fabris?

O pai já havia desaparecido quando Zeneide começou a inchar. O homem da banca passara a ser defunto por obra de uma bala perdida. Os meninos riam dela e abaixavam as calças para ela, insultando-a em público. Entre as meninas havia sussurros e as mais ousadas apontavam-na com o dedo em riste, chamando-a de santinha de bordel.

Quando a criança nasceu, veio ao mundo deficiente. Os pezinhos tortos, as perninhas frágeis, sendo uma visivelmente menor que a outra.

Zeneide chorou durante quase todo o primeiro ano. Com a criança no colo, ou acavalada em seu quadril, iniciou as novenas implorando a todos os santos pela cura milagrosa. A criança não andou antes do segundo ano. Nunca andaria como as outras crianças. Praticamente arrastava-se.

No início da noite, enquanto a menina dormia, Zeneide ia à igreja, implorar aos santos uma intervenção junto ao destino. Queria que a filha pudesse pelo menos andar, mesmo que continuassem tortos os pezinhos. Bastava corrigir a atrofia dos músculos.

Ia à igreja no início da noite a conselho do padre. Ele queria poupá-la dos falatórios das carolas na hora da reza do terço. Eram pias demais as carolas. Elas acreditavam que a presença de Zeneide na igreja, na hora da reza, era um insulto ao Santíssimo, a fonte do amor e da misericórdia. E não era conveniente que ela continuasse a vir à sacristia. O padre era o pastor de todas as almas e não podia se dedicar a uma só ovelha. Tanto mais uma ovelhinha que vivia perdendo coisas por ali.

Por ser cabeça dura Zeneide nunca entendeu o que o padre quis dizer com aquele ‘perdendo coisas por ali’. Mas o padre era inteligente e sabia o quanto fora exposto ao constrangimento perante a freira. Sentira-se instado a explicar o aparecimento da embalagem contendo uma camisinha entre seus pertences. Tinha a marca de distribuição feita pelas freiras. Zeneide a deixara cair na nave do templo!

Assim morreu Zeneide. Alguém há de contar como sobreviveu a filha, que ficou sozinha aos dois anos de idade em nosso mundo tão pleno de amor.

A noite chegou preguiçosa, atrasada, depois de um dia que não queria passar.

As estrelas não apareceram logo. As nuvens espessas de pó e de fuligens desejaram poupá-las das imagens grotescas e dos guinchados do padre, exigindo dos guardas a retirada do corpo das escadarias. Eles dois, cada um segurando em um dos pés, arrastaram o defunto até um canto retirado do gramado. Cobriram com uma lona escura. Acreditavam que naquele caso a polícia técnica não se importaria com a remoção. Algumas pessoas aguardaram por mais de uma hora na esperança de que os pivetes fossem trazidos ao local pelas orelhas. Mas os próprios guardas lhes disseram que de nada adiantaria prendê-los e aos poucos os curiosos se dispersaram.

Zeneide morreu quando saia da igreja, nem soube que o Senhor a veio aliviar por intermédio dos pivetes. Nem eles desejavam atirar nela. Aconteceu. E foi somente isso, quer dizer, foi uma obra do destino, de cujos caprichosos desenhos ninguém está livre.

Foi menina danada, a Zeneide.

Arredia, calada, impossível de amestrar. Cresceu no barraco, nas imediações. Com dose anos de idade ela era dada a seguir as irmãs de caridade que por lá faziam suas rondas distribuindo alimentos, remédios, conselhos e santinhos. Ansiava então pela vinda do pai, ao cair da tarde, sentando-se no chão para acariciar as canelas dele. Parecia enamorada. O pai fazia questão de retribuir a atenção. Punha-a para dormir e não saia do quarto enquanto ela não estivesse dormindo a sono solto. Com o tempo ele começou a se esquecer daquele apego da menina. Então, um dia, ela criou coragem e pediu a uma das freiras para ver como era a embalagem dos preservativos. A freira desconfiou, mas considerou melhor estimular a prevenção. Alguns dias depois o homem que vendia revistas lhe disse em segredo que aquilo não era nem bom nem necessário. E que podia revender dando-lhe alguns trocados. Mas para isso ela precisava aprender a tirar das freiras uma ou duas fieiras completas.

Não era de juntar-se às pessoas, não era de brincar com os meninos que corriam pelas ruas enlameadas. Eles corriam girando aqueles arcos de barris, tocando-os com uma lasca de madeira escura. Não era de brincar com as meninas que batizavam bonecas, ou se expunham ao final da tarde, sentadas sobre a guarda da ponte e pondo a língua para os homens que passavam cansados, elogiando-as, formulando convites para carinhos na cama.

Não! Ela não se juntava a ninguém, preferindo olhar, distraída, para os cães que talvez superassem em número aos humanos que por ali consciente ou inconscientemente cumpriam os dias que a generosa vida lhes riscara nas estrelas. Tardes de sol se pondo avermelhado, avermelhando os telhados de zinco, os terreiros e as ruas de terra nua cortadas por esgoto a céu aberto. Era o pó que avermelhava o sol, ou era o sol vermelho que coloria a poluição, pondo franjas escarlates na fumaça negra das chaminés fabris?

O pai já havia desaparecido quando Zeneide começou a inchar. O homem da banca passara a ser defunto por obra de uma bala perdida. Os meninos riam dela e abaixavam as calças para ela, insultando-a em público. Entre as meninas havia sussurros e as mais ousadas apontavam-na com o dedo em riste, chamando-a de santinha de bordel.

Quando a criança nasceu, veio ao mundo deficiente. Os pezinhos tortos, as perninhas frágeis, sendo uma visivelmente menor que a outra.

Zeneide chorou durante quase todo o primeiro ano. Com a criança no colo, ou acavalada em seu quadril, iniciou as novenas implorando a todos os santos pela cura milagrosa. A criança não andou antes do segundo ano. Nunca andaria como as outras crianças. Praticamente arrastava-se.

No início da noite, enquanto a menina dormia, Zeneide ia à igreja, implorar aos santos uma intervenção junto ao destino. Queria que a filha pudesse pelo menos andar, mesmo que continuassem tortos os pezinhos. Bastava corrigir a atrofia dos músculos.

Ia à igreja no início da noite a conselho do padre. Ele queria poupá-la dos falatórios das carolas na hora da reza do terço. Eram pias demais as carolas. Elas acreditavam que a presença de Zeneide na igreja, na hora da reza, era um insulto ao Santíssimo, a fonte do amor e da misericórdia. E não era conveniente que ela continuasse a vir à sacristia. O padre era o pastor de todas as almas e não podia se dedicar a uma só ovelha. Tanto mais uma ovelhinha que vivia perdendo coisas por ali.

Por ser cabeça dura Zeneide nunca entendeu o que o padre quis dizer com aquele ‘perdendo coisas por ali’. Mas o padre era inteligente e sabia o quanto fora exposto ao constrangimento perante a freira. Sentira-se instado a explicar o aparecimento da embalagem contendo uma camisinha entre seus pertences. Tinha a marca de distribuição feita pelas freiras. Zeneide a deixara cair na nave do templo!

Assim morreu Zeneide. Alguém há de contar como sobreviveu a filha, que ficou sozinha aos dois anos de idade em nosso mundo tão pleno de amor.

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