THAYMA
Nas proximidades do povoado de Fadel, na encosta da montanha, a noite entregou Dhan aos primeiros clarões do novo dia.
O lugarejo a que ele agora adentrava montado em seu cavalo negro era um dos últimos rumo ao território Persa, objetivo de sua caminhada. Eram poucas residências esparsas, com população provavelmente igual ou inferior aos forasteiros, pessoas de diversas raças e credos que para ali acorriam acampando à margem da trilha. Pessoas interessadas nos assuntos relativos à formação das caravanas. De repente, a quinhentos metros do acampamento, surgiu meia dúzia de meninos correndo pela trilha na direção de Dhan. Tentando alcançá-los na corrida, dois rapazes praguejavam atirando pedras contra o grupo. A perseguição terminou inopinadamente. Os rapazes voltaram ao acampamento gesticulando e emitindo gritos. Os meninos, protegidos por trás da montaria de Dhan, quedaram resfolegando e amedrontados.
Foram os pequenos larápios que indicaram a Dhan a trilha para a residência de Fadel. Era uma casa de pedra no alto de um morro. Vesgo, aparentemente frágil, Fadel reunia experiência e habilidade para o trato com todo tipo de mercador. Em suas primeiras palavras expressou admiração pela coragem demonstrada por Dhan ao viajar durante a noite e sozinho, passando por regiões montanhosas com risco de ser atacado pelos assaltantes assassinos. Dhan agradeceu pelas palavras generosas, mas compreendeu claramente o sentido de admoestação que continham. Por alguns dias ocupou um cômodo pequeno e abafado nos fundos da residência e teve a companhia constante de Fadel sempre que a desejou para descer ao acampamento.
Nas longas horas dos dias o calor era quase insuportável. Com o vento aquecido no deserto vinham partículas de areia. Atingiam os olhos, a boca, impregnavam-se na pele, constituíam camadas finas de poeira sobre todas as coisas. O acampamento era permanentemente tomado por muito barulho, movimentação de animais, de carroças e de cargas. De um momento para outro podiam surgir impropérios e empurrões. Os mais rudes e exaltados tentavam resolver suas pendências trocando socos. Pelo acampamento circulavam ladrões sobre os quais era preciso estar permanentemente de olho. Nesse clima emocional formavam-se as caravanas que ao longo de vários meses avançariam lentamente em direção a vários destinos. Elas saiam uma após outra, geralmente ao amanhecer. Dhan ansiava por partir também, mas as negociações com os diversos guias eram difíceis. Os preços exigidos eram muito elevados para suas posses. Quando os preços eram razoáveis a expressão facial de Fadel indicava perigo e Dhan não fechava acordo.
Felizmente havia divertimento por ali. Havia os jogos. As disputas de forças nos braços. E havia os mágicos, os malabaristas, as jovens bailarinas em espetáculos improvisados, exibindo suas delicadas curvas em apresentações coloridas e eróticas ao som de músicas magistralmente executadas por exímios artistas.
Em alguns dias Dhan havia por assim dizer gravado em sua mente a posição de pedra por pedra na trilha que o conduzia à residência de Fadel. Caminhavam sempre à pé, lado a lado, regando uma amizade sincera que nasceu da admiração mútua. Desciam pela manhã. Retornavam muitas vezes sob a luz das estrelas. O moço caminhava sonhando com sua integração em uma das caravanas, imaginando encontrar em algum ponto distante a vocação de sua alma. O mais velho caminhava consciente de que a felicidade pode estar a dois centímetros de nossos olhos e ainda assim não termos a percepção de sua presença. Ou não reunirmos em nós o merecimento necessário para conquistá-la.
Fadel abdicara de seu sonho de riquezas materiais por ocasião do nascimento da filha. Era uma criança muito viva, muito alegre. As longas jornadas exigidas de um mercador mantinham Fadel longe daquele riquíssimo tesouro por meses e meses. Ele abandonou os negócios, desfez sua rede de fornecedores e fregueses. Preferiu permanecer no vilarejo cuidando de suas cabras, abençoando todos os dias o desenvolvimento natural da filha. Quando a menina cresceu revelando o espírito reservado, uma desarmonia velada com a madrasta a mantinha cada vez mais hermética em relação aos seus sentimentos. Um dia a moça desapareceu. Fadel descobriu assim que mesmo abdicando de todos os seus interesses pessoais, mesmo que lhe desse a própria vida, não a teria jamais consigo. Dela restaram em poder de Fadel alguns pertences incluindo uma foto estampada em um cartão postal.
-- Esta era a imagem de minha Tahyma – disse ele com os olhos marejando.
A partir de então a imagem semelhante a da foto apareceu nos sonhos de Dhan em flashes aleatórios, impressionando de tal forma sua mente consciente que ele passou a ‘vê-la’ nitidamente por todo canto. Algumas vezes perdia o sono. O cubículo que ocupava tornava-se opressivo demais, abafado, com o ar viciado. Ele então procurava sair silencioso ao relento para sozinho contemplar o céu estrelado. Nos brilhos de uma estrelinha, ele via os olhos de Tahyma. Não da Tahyma da estampa do cartão postal. Ele não a conhecera tão menina. A Tahyma que teimava em permanecer diuturnamente em sua companhia, ele a conhecera nas trilhas pelas quais havia passado. Ele a havia beijado à luz da Lua. Ela o havia acarinhado e em noites encantadas, trocando juras de amor, haviam saciado seus desejos mútuos cobertos unicamente pelo manto estrelado de um céu de paz e de amor.
Felizmente jamais falou a Fadel a respeito daqueles seus sentimentos que encantavam e ao mesmo tempo afligiam sua alma. Então houve uma noite em que desceu sozinho e, nas proximidades do acampamento, deparou-se com cenas que o levaram a tomar a decisão que mudaria totalmente seu destino. Ao entrar em um antro viu um homem extremamente rude se divertir com uma jovem prostituta. Seu palavreado de baixo calão produzia ferimentos profundos como os produzidos pelo gume de um punhal. E não obstante, ela reagia rindo, acarinhando, excitando.
Dhan não foi nunca um santo. O odor de mulher o atraia desde sua puberdade e naquela ocasião estava há muitos meses sem tocar em um corpo feminino. Mas naquele antro a garota exalava o odor azedo da falta de higiene. Ela na realidade fedia. Apresentava curtos cabelos ensebados, duros. De um momento para outro o homem a empurrou de seu colo atirando-a ao chão. E pondo-se em pé, gargalhou dizendo com desprezo:
-- Vadia! Tão menina e já com boceta de puta velha!
Dois homens, certamente a serviço de Fadel, seguraram Dhan. Um deles recebeu no peito o soco com que o rapaz teria agredido o brutamonte.
-- Tolo! – disse o protetor a um Dhan quase fora de si pela raiva - Não entregue a sua vida assim, tão gratuitamente. Ele a maltrata e ela o prefere a você que pretende impedi-la de viver suas emoções e fantasias. Você ainda é muito verde para saber até onde pode se desmerecer por si mesma uma mulher destituída de um horizonte. Ainda não sabe que o mundo é dos ousados?
Com efeito. Levantando-se, a moça passou por Dhan com expressão de asco. Rindo, mulheres se aproximaram do garanhão acarinhando-o. O homem emitia gritinhos de vitória. E a garota hostilizada no minuto anterior ajoelhou-se a seus pés abrindo-lhe a braguilha. Ele urrou satisfeito:
-- Suga, cadela!
Na manhã seguinte Dhan se despediu de Fadel a quem declarou haver desistido de prosseguir no rumo das maravilhas que existiriam na Pérsia.
Fadel o viu partir em seu cavalo relativamente bem amanhado. Por mais que o estimasse, não pode deixar de recriminá-lo intimamente. Considerou-o inconstante em suas buscas, deixando-se vencer pelos primeiros sinais de entraves no caminho que poderia levá-lo a muitas glórias caso fosse capaz de lutar bravamente por seus ideais.
Dhan cavalgou com o coração pulsando forte, percorrendo o caminho de volta.
Em algum lugar, ao longo da rota, haveria de reencontrar Tahyma. E em nome do amor, proporcionar proteção, carinho e muita compreensão. Ela talvez não se interessasse mais por ele. Ela talvez o recusasse. Ele e seu amor seriam provavelmente rejeitados. Pouco importa. Ele havia descoberto que a amava e que seu amor, mesmo rejeitado, poderia vir a ser um horizonte.
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